O que podemos esperar de Deus? O que nos diz a religião cristã a respeito da intervenção divina na vida humana? Como é que podemos pensar a dinâmica dessa relação?
Ando pensando que o desafio de todas as relações esteja justamente em não confundirmos os papéis. Nenhuma relação humana será saudável na confusão dos papéis. Definir o que se é consiste em construir as bases sólidas que nos permitirão “esperar e também desesperar”. Já me explico. Esperar é a atitude que nos permite a serenidade de que o outro fará por nós, aquilo que não podemos fazer a sós. Desesperar é chegar à conclusão de que a vida tem limites, que terão que ser respeitados. Desesperar não significa sair gritando, esbravejando desaforos a respeito dos limites, mas consiste em serenizar o coração, aquietando-o e esperando os ensinamentos que virão do acontecimento que provocou a desesperança. E assim concluo: o desespero é o outro lado da esperança...
Gosto de olhar para Deus. Gosto de esperar por ele, sobretudo nos momentos das minhas desesperanças. Olho-o como quem olha querendo decorar, aprender, incorporar. Faço inúmeros pedidos a Ele, mas tenho sempre o cuidado para que minhas preces não sejam formuladas nos verbos imperativos... Prefiro apresentar as questões, colocá-las em suas mãos e depois esperar pela vida. Tenho medo de tornar-me o deus de Deus. Receio que minhas preces sejam ordens mesquinhas Àquele que tudo sabe de mim. Por isso, eu ando dizendo que a vida é o espaço da liberdade, lugar onde me exercito como homem, desejoso de acertar e atualizar na minha vida, o único desejo de Deus para mim: a bondade. Somente a partir da bondade de Deus é que podemos dizer que Ele tudo pode. Ele tudo pode, mas o seu poder não fere, nem desrespeita o espaço humano de nossas escolhas. E viver é escolher.
A teologia nos ensina que em Deus não há variação de humor. Ele é sempre amor, movimento que não sai da rota que lhe coloca na coerência de ser o que é. E por isso é fácil entender a ação de Deus na vida humana. Dizer que Ele permite acidentes, que permite doenças e que protege e desprotege é o mesmo que colocar uma contradição naquilo que Ele é. Expliquem-me, então: se Deus é amor, como posso entender que uma criança como o nosso querido Lucas tenha um câncer que viaja pelo seu corpo? Como não entender que Ele não tenha curado o nosso padre Léo de sua enfermidade tão dilacerante? Aí você pode me perguntar: “Então não adianta rezar, padre?” E eu respondo: adianta minha filha, meu filho. Rezamos, não para que Deus faça o que queremos, mas para que tenhamos forças de entender as fragilidades da vida, os limites do nosso corpo, e quem sabe, viver a surpresa da cura inesperada, quando tudo indicava que já tivéssemos chegado ao fim. Rezamos porque temos direito de pedir, de clamar, e de explicar as razões dos nossos desejos, mas não temos o direito de determinar o que Ele terá que fazer.
Estamos constantemente debaixo da proteção divina. Ela não nos deixa nunca, mesmo quando não pedimos por ela. Minha mãe também me diz, quando saio de casa: “vai com Deus, meu filho! Cuidado na estrada!” Na frase de minha mãe há duas realidades a serem observadas: o dom e a tarefa. O dom está na primeira expressão: “vai com Deus.” E eu vou mesmo. Ele não sabe me deixar ir sozinho. Na segunda está a tarefa: “cuidado na estrada!” Na tarefa, a vida resguarda o espaço para a responsabilidade humana. Tenho duas possibilidades diante da fala de minha mãe: acato ou não. Se eu acato, o dom se manifesta. Se não, ele fica ofuscado na minha escolha errada.
Cristianismo é isso. Não há relação saudável com Deus se não descobrimos constantemente as duas realidades na nossa vida: o dom e a tarefa. Em todas as situações humanas há sempre uma parcela de dom a ser recebida, e a uma parcela de esforço a ser executada. O milagre se dará por duas vias...
Não quero confundir ninguém. Quero apenas apontar os caminhos para uma religião madura, onde Deus deixa de ser movido por nossas ordens mesquinhas, onde a oração se torna o acolhimento do dom e cumprimento da tarefa. Uma religião, que ao invés de fazer perguntas absurdas prefere o silêncio da busca que nos aperfeiçoa. Aí rezaremos com as mãos, com os pés, no trânsito, nas esquinas, e em toda parte. Retiraremos de nossa mente a resolução fácil, aquela que justifica os piores acontecimentos do mundo como vontade de Deus...
Permitir... dizer que Deus permite é voltar à única permissão que Dele brota: a vida, a benção eterna, o dom que explode em todos os instantes nas menores iniciativas que geram o universo criado. A permissão é única, total e globalizante. Permissão que não contradiz em nada aquilo que Ele é.
Eu o defendo sempre. Não quero que o acusem das desgraças do mundo. Quando minha irmã morreu num acidente trágico, vítima da imprudência humana, de uma bagagem que estava no lugar errado e que caiu sobre ela no momento em que o ônibus tombou, alguém quis me consolar às custas de uma acusação descabida: “foi a vontade de Deus!” E naquele momento minha mente se iluminou para que eu não permitisse que Ele fosse injustamente acusado daquele crime. Prefiro desacreditar dos humanos a ter que pensar que Deus seja capaz de matar uma mulher que precisava viver para cuidar do seu filho...
Prefiro encarar a dura realidade de que minha irmã estava morta, vítima da imprudência de um motorista que transgrediu a regra, a ter que dizer ao meu sobrinho, que Deus não pensou na sua dor de menino, antes de permitir que o ônibus caísse naquela ribanceira... Preferi pensar que Deus estava chorando comigo, lamentando com meu sobrinho, consolando-o e o preparando para reacender nele a esperança que parecia diluída no ar...
Mas você poderia me perguntar: Mas padre, onde é que estava Deus no momento em que sua irmã morreu de forma tão cruel e assustadora?
E eu lhe respondo sem receio de errar: No mesmo lugar em que estava, no momento em que mataram o Filho Dele!
Padre Fábio de Melo
Colaboração: Ronaldo Salles
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