Primeira carta
Querido irmão padre Fábio,
Depois de alguma pausa, voltemos à nossa prosa.
No fluxo de nossa vivência, vamos aquinhoando experiências. Nossos olhares são capazes de reter considerações que vão moldando o que somos. A imagem surge como os sentidos captando impressões. Depois dela, vem o conceito. O conceito é o que permanece quando a imagem se esvai. É como o conhecimento que fica com o avançar da aprendizagem. Lançamos mão de excessos para que a viagem fique mais leve ou para que o compartimento dos nossos sentidos receba outros companheiros. O bom conceito é aquele que traz a companhia da bondade, da gentileza, do respeito, entre outros avidamente esperados.
Esperamos como necessidade vital. Esperamos o amanhecer. Esperamos o entardecer. Esperamos a demorada cicatrização da incômoda ferida. Esperamos um amor. Esperamos compreensão. Compreensão apenas, amigo. Guimarães Rosa dizia que “esperar é reconhecer-se incompleto”. É na consciência de nossa incompletude que a espera ganha mais significado. O futuro existe.
Esperamos uma humanidade mais evoluída em que os direitos mínimos dos humanos sejam respeitados. Uma humanidade fraterna.
Quantos crimes bárbaros assombram nossos irmãos!
Sabe, amigo, certa feita, em um congresso de direitos humanos, presenciei uma jurista indignada com os horrores praticados na Tanzânia contra os albinos. Descrevia com tamanha dor o que passam nossos irmãos e tentava nos acordar do sono do comodismo. Sim, porque parece que a dor alheia não nos pertence e que, portanto, não cabe a nós o exercício do agir. Aliás, não precisamos ir até a África para perceber a nossa pouca ação. Basta olhar ao lado.
O albinismo é um tipo de deficiência na produção de melanina. Os albinos têm a pele pálida, esbranquiçada, têm o cabelo fino e uma sensibilidade maior nos olhos, que sofrem quando estão expostos à luz. Ocorre que há uma superstição medonha que afirma que eles servem para rituais de mandingas. Isso não acontece apenas na Tanzânia, mas em outros países da África. Esses feiticeiros chegam a pagar uma verdadeira fortuna, em se considerando a pobreza desses países, por um pedaço do corpo de um albino. Se for de criança, o valor é maior. Vendem línguas, braços, genitálias, pernas etc. Dá sorte beber o sangue de um albino ainda quente, é o que acreditam. Fico imaginando o pavor dos pais quando os filhos demoram a voltar. A ansiedade em proteger a prole. Fico imaginando a prática macabra. São humanos caçados como animais.
Não estamos falando de uma outra era nem de ficção. Enquanto rabisco essas palavras, há pânico em algum lugar do mundo na luta pela sobrevivência. Sentem-se vencedores esses caçadores de gente, como se sentem vencedores os homens com as pedras nas mãos para dar cabo da vida de mulheres condenadas em países cuja legislação afirma ser o direito à honra superior ao direito à vida. Mulheres abusadas por uma sociedade machista cheia de preconceitos, embrutecida pela impiedade. A cena de uma mulher enterrada até a cintura sempre me causou angústia. Fica assim, com as mãos amarradas, para não proteger o rosto das pedras jogadas sem comiseração. Em algumas comunidades, o início do apedrejamento se dá com pedras menores para que a dor seja prolongada. Uma pedra maior poderia ser fatal e o divertimento teria menor duração. As pessoas vão aos montes para assistir e participar. É como uma festa, uma diversão qualquer. Assim faziam aqueles que saíam às ruas para ver as pessoas sendo guilhotinadas ou queimadas ou enforcadas. Essas penas corporais, capitais, perduraram durante muito tempo. Como também
as arenas em que eram jogados os cristãos para serem mortos pelos leões. E o público assistia e ria do pavor com que corriam de um lado a outro até serem devorados. Que prazer estranho é esse? Que deturpação do conceito de conviver? E a compaixão? Os gladiadores não fazem parte do passado. O “vale-tudo” arrasta multidão para torcer pelo mais forte. Quanto ao mais fraco, merece risos, vaias, desprezo. É apenas um perdedor. A sua dor parece incomodar menos do que a sua fragilidade; afinal, o espetáculo terminou mais cedo. Há ainda os jovens em bando que, desafiados, são capazes de espancar até a morte quem cruza o seu caminho. Ou queimam moradores de rua para amainar o tédio. Ou buscam um diferente qualquer para humilhar, destruir, matar. Meu Deus, mas não pertencemos à mesma humanidade? Quando um membro sofre, não é o corpo todo que sofre?
Amigo, desculpe-me começar com essas cinzentas paisagens esta nossa nova prosa. Mas a verdade é que me sinto hipócrita em conviver com uma sociedade que tolera essas práticas como se fizessem parte da cultura ou da vida. A cultura não pode destruir a vida, ao contrário, tem de preservá-la. Evidentemente, crueldades acontecem todos os dias nas esquinas do nosso país. Há crianças sendo violentadas por quem deveria protegê--las. Há mulheres sendo espancadas pelos maridos, há crimes brutais, há miséria. Mas me parece que pelo menos nossas leis são um pouco mais respeitosas com os direitos humanos. Embora, na prática, a realidade seja outra. Veja, por exemplo, a vida nas penitenciárias e nos espaços de privação de liberdade para adolescentes. Leis corretas, práticas medonhas. Além do mais, a nossa acomodação faz com que cruzemos os braços
diante do anseio de um recomeço que têm os egressos do sistema penitenciário, por exemplo. Temos o bom discurso da segunda chance. Mas, na prática, nos escondemos. São perdedores, padre. São perdedores esses que caíram nas malhas da criminalidade. E nós, os vitoriosos, não devemos nos macular com eles. Que pena!
Gostaria tanto de mudar essa realidade. Sei que é difícil. Algumas questões envolvem uma mudança de postura mundial. A paz ainda é uma utopia. Cuidar da pessoa humana toda e de todas as pessoas humanas é o sonho do papa Bento xvi, em sua Encíclica mais recente. A globalização da economia e das informações não significou a universalização da fraternidade. Estamos engatinhando ainda em matéria de respeito. Fazemos pouco ou praticamente nada contra o recrudescimento da violência. E não precisamos ir longe. A dor mora bem ao lado, como dissemos.
Uma vez, em um metrô lotado de pessoas apressadas, vi uma menina com uma boneca na mão, cabelos cacheados e um olhar triste, de mãos dadas com um pai cuja rudeza no olhar não escondia a pouca paciência com os passos lentos da filha. Puxava-a como se fosse um objeto enroscado. Sua pressa contrastava com a fragilidade da pequena. Olhou-me em algum momento. Ensaiei alguma conversa. O metrô parou. O pai a puxou e desceram. Fiquei por algum tempo imaginando a história familiar dos dois. A menina parecia triste. Podia ser apenas uma impressão minha. Mas ela passava-me tristeza, e ele, rudeza. Não tinha o poder de intervir. Ali não havia crime algum a não ser a criminosa falta de cuidado, de afeto. Fiquei conjecturando sobre a casa em que moravam, se tinha mãe a menina. Se tinha irmãos. Se o pai era agressivo. E, se fosse, como eu haveria de saber? Tenho essa mania, amigo, de tentar imaginar a vida dos outros. Aliás, esse é o nome de um filme alemão de 2006, ganhador do Oscar de melhor filme estrangeiro, que conta a história de um alto funcionário da Alemanha Oriental, incumbido de vigiar um dos maiores dramaturgos do país. Aos poucos, envolvido na trama de emoções que ele e sua mulher viviam, o antes impiedoso funcionário, acostumado a torturar para obter uma prova, se transforma. Um homem que não chorava passa a chorar; que não sorria passa a sorrir. A imagem foi moldando um novo conceito em sua história. Bastou o contato com o amor cotidiano para a metamorfose.
Querido padre Fábio, há um desafio diuturno de não desistir da pessoa humana. Por mais dolorosas que sejam as nossas experiências. É preciso não desistir. Norberto Bobbio em A era dos direitos afirma que “o problema fundamental em relação aos direitos do homem, hoje, não é tanto o de justificá-los, mas o de protegê-los”.
Descreve, na mesma obra, convenções e tratados internacionais que tratam dos direitos da pessoa humana genericamente ou especificando as vítimas de preconceito como as mulheres, os negros, os pobres, entre outros. Direitos do homem, democracia e paz são processos que não podem ser encerrados.
Vamos um pouco além. Por que ainda não aprendemos a conviver com as diferenças? Medo? Ausência de amor?
Falemos de amor na poesia leve de “Um soneto”, de Guilherme de Almeida:
Ama, quieto e em silêncio. É tão medroso
o amor, que um gesto o esfria e a voz o gela.
Não. O amor não é medroso. O poeta brinca apenas com a vulnerabilidade dos sentidos ao emprestar “O eco” à vida:
Perguntei à minha vida:
– “Como achar a apetecida
felicidade absoluta?”
E um eco me disse:
– “Luta!”
Lutei. – “Como hei de a esta pena
dar a cadência serena
que suaviza, embala e encanta?”
O eco, então, me disse:
– “Canta!”
Cantei. – “Mas, como, num verso,
resumir todo o universo
que em mim vibra, esplende e clama?”
então, o eco me disse:
– “Ama!”
Amei. – “Como achar agora
a alma simples que eu pus fora
pelo prazer de buscá-la?”
O eco, então, me disse:
– “Cala!”
Calei-me. E ele, então, calou-se.
Nunca a vida foi tão doce...
Tudo é mais lindo a meu lado:
Mais lindo, porque calado.
Lutar, cantar, amar e calar... assim queria o poeta. Lutar para que os desvarios mundanos não roubem nossa sensibilidade. Cantar a canção da dor e a canção do amor. Cantar pelos que, empedernidos, já não conhecem os acordes. Cantar por aqueles que impedem a canção alheia. Cantar o silêncio dos que não têm voz ou vez. Amar como ação necessária de encontros e paisagens. Contemplamos o mundo para conhecê-lo e transformá-lo. E calar? Mas como calar diante das feridas abertas da injustiça e da destruição do nosso irmão? Calar para, como Maria, a mãe da esperança, escutar a boa-nova, a missão e então agir.
Irmão querido, não é possível agir sem antes sentir. Aqui falo da vitória do sentimento sobre a insensibilidade. Da canção de liberdade que carece de intérpretes.
Ainda criança, em uma excursão para um parque de diversões, experimentei a dor preenchendo o meu tal fluxo de vivências. A história se deu mais ou menos assim. Éramos um ônibus de crianças conduzidas por dois ou três professores. Chegamos ao parque. Os brinquedos nos deixavam alucinados. Era emocionante para nós, meninos interioranos, explorar o grande parque de diversões da capital. A adrenalina misturava-se à alegria e à molecagem. Assim, furávamos fila. Discretamente. Tínhamos a desculpa da pouca idade. E tudo era festa. Até que, quase no horário do retorno, furamos mais uma vez a fila de um brinquedo chamado Montanha Encantada. Eu e mais uns quatro. Quietinhos, entramos; e quietinhos, ficamos. Uma mulher, entretanto, não se conformou com nossa audácia e começou a dizer as piores ofensas. Ela tinha razão, então nos fizemos de distraídos. Foi quando um homem resolveu nos defender. Alegou que éramos crianças nos divertindo. A mulher ficou ainda mais irritada dizendo que exatamente por sermos crianças é que deveríamos ser corrigidos. Ele tentou dizer alguma coisa e ela soltou um sonoro “cala a boca”. Ele retrucou e ela avançou sobre o homem. Deu um tapa em sua cara. Ele retribuiu. E nisso chegou o marido dela. E uma confusão tomou conta daquela fila. Vieram os seguranças e nós saímos correndo em direção ao ônibus. Chegamos ofegantes. Cheguei entristecido. Eu sabia que não devia furar fila. E o que mais doía é que o homem que tinha me defendido estava agora em uma situação ruim. Contei a história meio choramingando a um dos professores e ele, vendo meu pânico, a piorou. “Parece que mataram o homem.” Meu Deus, como sofri naquela viagem. Tinha vergonha de chorar. Escondi-me de mim mesmo aos oito ou nove anos de idade. Cheguei em casa angustiado. Quando vi meu pai, abracei-o e chorei muito antes de conseguir contar a história. Meu pai primeiro me abraçou em silêncio, depois encontrou uma saída para aliviar a minha preocupação. “Filho, vamos ver a notícia na televisão. Se o homem morreu, eles mostram. Se não mostrarem, é porque nem machucado ele ficou.” Eu acreditei. E fiquei de mãos dadas com ele até a última notícia.
Ah, pai amado, quanta sabedoria na sua simplicidade! Padre, como é importante termos espaços para narrarmos as nossas perdas em casa. Pais que nos escutem primeiro para depois apontar outros horizontes. Meu pai era assim, resolvia comigo as minhas dores. Era preciso sentar ao lado dele para que pudéssemos descobrir juntos o desfecho. Ele não ridicularizava a minha dor. Era uma brincadeira do professor, apenas. Mas não importava. Se eu estava sofrendo, era preciso respeitar. E, depois do alívio, o ensinamento. “Filho, nessas horas a gente aprende que é bobagem fazer a coisa errada.” E mais nada. Um sorriso. Um beijo de boa noite. E mais nada. E do que mais eu precisava naquela noite intranquila? Da segurança de suas mãos grandes. Meu pai tinha mãos grandes e nós brincávamos de ver quanto faltava para que minhas mãos superassem as suas. Um dia, as minhas mãos ficaram maiores. No começo, eu as encolhia um pouco para que as suas mãos continuassem sendo as vitoriosas.
Amigo, no dia em que ele morreu, brincamos um pouco antes, no hospital, de ver quem tinha a maior mão. Novamente, encolhi um pouco a minha para que ele ganhasse. Do alto dos seus 84 anos, ele me disse: “Filho querido, eu sei que a sua mão é muito maior do que a minha, mas isso não é um problema para mim, ao contrário”.
Essa não era a admissão de uma derrota. Era a sua vitória. Meu pai queria que eu crescesse e não competia comigo. Minha vitória era a sua vitória. Minhas inquietações eram acalentadas em sua paciência. “Paciência, filho”, era quase que uma jaculatória. Quando alguma coisa não saía do jeito que eu queria, “paciência, filho”; quando a doença chegava e alguns planos tinham de ser desfeitos, “paciência, filho”. Até nas derrotas bobas do meu time de futebol. Eu chegava em casa cheio de desculpas por ter perdido, e ele ouvia, e depois lançava, “paciência, filho”. É, pai, como esta virtude faz falta: paciência.
Paciência não como acomodação. Voltemos ao poeta. Calar é contemplar o que precisa ser mudado para depois lutar, combatendo o bom combate, e depois cantar uma canção nova e aí, então, amar. E calar novamente. Sim, amigo, é no silêncio dos nossos porões que habitam muitas razões.
Volto às imagens e aos conceitos. Ganhar ou perder são imagens que temos de momentos que vivemos e de pessoas com as quais nos surpreendemos. Não sei, amigo, se você tem medo das perdas ou das pedras que surgem por aí. Ou se a paciência já é convidada do seu alimento diário. Persigo a paciência como persigo a inquietação. Não quero deixar as coisas como estão. Quero mudar o mundo, sim, e para isso preciso também da paciência. E da cumplicidade. Sozinho, sou incapaz de prosseguir, até porque os medos contemporâneos não me abandonaram. Sozinho, sou capaz de desistir. Nessa tessitura social, é necessário o encontro de ideias e ideais. E assim ouço você. Sua canção de liberdade, sua sensibilidade diante da dor alheia. Eu não quero conviver passivamente com a crueldade. Quero a coragem de Ester, que se aproxima do rei Assuero decidida a salvar o seu povo. O medo não foi mais forte do que a decisão. E ela venceu. Não venceu apenas porque ele estendeu o cetro e poupou-lhe a vida. Venceu porque protegeu a vida dos seus irmãos. Venceu porque entrou para a história como alguém que se importou com os outros. Essa é a grande vitória. E ela não será alcançada se passarmos os dias diante do espelho e, diante do espelho, reparando nas mudanças que o tempo é capaz de fazer sem pedir a nossa autorização. A alma enrugada é que é o problema. Envelhecemos prematuramente pela ausência de um tema. Um tema que nos conduza a viver. E aí sim vem a derrota. As outras são contingências. Fazem parte da margem, apenas.
Padre Fábio, termino estes rabiscos ansioso por notícias suas. Notícias do seu olhar para a humanidade. Sei que, como sacerdote e como poeta, também sofre com a dor alheia. Ouço suas pregações emocionadas quando o assunto é o calvário da humanidade. O calvário dos crimes que vemos por aí e o calvário da mulher traída, humilhada, que soluça silente a sua dor.
Suas composições nascem de sua compaixão. E seu repertório empresta um tema àqueles que por razões menores desistiram de viver. Tudo, menos isso. Desistir de viver, não! A terra precisa de semeadores, embora a rede seja aparentemente mais agradável. Na rede, o descanso merecido. Passar a vida na rede enjoa. O balanço agrada um tempo. Muito tempo deprime. Balancemos nosso deitar como a simples espera do levantar. E mais nada. Levantemos, amigo. A plantação está linda, mas há algumas pragas que temos de lançar fora.
É o momento de vencer. O trigo tem de vencer o joio para que o alimento chegue até a mesa. E para que a mesa seja uma celebração que alimenta o corpo e os sentimentos.
Obrigado pela espera e pela atenção. A pausa foi só na escrita.
Somos irmãos ininterruptamente...
Com o renovado carinho,
Gabriel
Segunda carta
Meu querido Gabriel,
Obrigado pelas palavras. Não é sempre que podemos receber uma fala tão sábia e sugestiva. Gosto de reconhecer nos discursos humanos as palavras geradoras. Em meio a tantas outras, elas saltam aos olhos, sugerem mais algumas, despertam o desejo de refletir, ir adiante.
Há discursos extensos que não nos presenteiam com palavra alguma. É a fala infértil, prolixa, redundante. Não agrega absolutamente nada ao que somos, mas ao contrário é capaz de nos retirar a alegria e a disposição. Neste mundo em que vivemos, é muito comum nos depararmos com discursos assim. Mas há outros que são ricos de palavras geradoras. São construídos a partir de uma visão holística da realidade, capaz de abarcar inúmeros aspectos numa mesma trama de palavras. É o discurso que não abre mão da sensibilidade, que realiza a proeza de colocar na mesma pauta razão e emoção.
Meu amigo, sua carta é um celeiro de palavras geradoras. Seu olhar sobre o mundo é profundo e respeitoso. A raiz de tudo isso é o amor que você tem pela humanidade. Não é possível refletir as questões fundamentais da comunidade humana sem que por ela exista amor e respeito.
Só o amor nos autoriza uma aproximação dos calvários do mundo. Ele é o elemento que impede a banalização, pois resguarda, envolve e protege o sagrado que por trás da dor se esconde.
Vez em quando vejo o sofrimento humano sendo usado como mecanismo. É lamentável. É afrontoso. A lágrima da mãe que perdeu o filho num soterramento é usada para ganho de audiência em programa de televisão. Não, não há comprometimento com o fato. O único desejo é aproveitar o acontecimento e transformá-lo em pauta para a manutenção de uma programação fútil. Não importa o quanto o outro sofre. O que importa é o quanto os índices de audiência subirão no momento em que a dor for exposta.
Gabriel, sua carta chegou num momento oportuno. Foi seguindo a trilha que suas palavras me sugeriram que pude adentrar o contexto de uma reflexão pertinente e necessária. A condição humana será sempre bem-vinda às nossas reflexões. Será sempre a base de uma boa prosa, afinal, toda vez que sobre ela refletimos, de alguma forma estamos alterando o que somos.
Antes de qualquer coisa, eu gostaria de salientar a satisfação que tenho de novamente estabelecer este vínculo. A carta é um mecanismo maravilhoso que nos proporciona a experiência do encontro.
Sua carta me fez recordar da ágora, a praça grega que foi lugar onde as experiências filosóficas ganharam caráter dialético. A ágora era um lugar de encontro. A principal atividade que os gregos exerciam por lá era a troca de mercadorias. Mas, naquele grande mercado a céu aberto, uma outra troca acontecia a ponto de prevalecer sobre as outras. Era a troca de ideias. Enquanto a materialidade era negociada sempre sobrava espaço para uma conversa, uma troca de opiniões.
Tive um grande professor de História da Filosofia que fazia questão de nos dizer que foi na ágora que a filosofia assumiu o seu verdadeiro papel na sociedade. A filosofia do cotidiano, a reflexão nossa de cada dia. A arte de articular o pensamento como realidade dialética, que extrapola a verdade hermética, fechada, mas que se abre à percepção do outro.
A filosofia que é construída a partir da vida concreta das pessoas. A trama da existência e seus fios tão cheios de nuances. A filosofia como tear que tece e favorece a compreensão do entrelaçamento das linhas.
Sua carta apresentou tantas questões que merecem ser refletidas. Fiquei assustado com a questão que envolve os albinos da Tanzânia. Eu desconhecia aquela tradição mórbida. É lamentável que nos dias de hoje ainda tenhamos que admitir tamanho absurdo. O fato nos leva a compreender que, em muitos lugares do mundo, o respeito ao ser humano ainda não aconteceu. Ele ainda está condicionado a fatores culturais. Está restrito, limitado.
Confesso que a desesperança é o caminho mais atraente. Ao me deparar com relatos como esse, minha primeira reação é desesperar. É bem mais simples. Chego à conclusão de que nossos braços são curtos demais para abraçarem o mundo. Podemos muito pouco diante de tanta dor, tanto sofrimento. Mas é no impulso dessa desesperança que eu me recordo que a Tanzânia também é aqui. Não preciso ir longe. Há realidades muito próximas de mim que também são desumanas. Mas há uma diferença. Aqui eu posso agir. Não há limites linguísticos, geográficos, nem tampouco culturais. Tenho diante dos meus olhos injustiças e sofrimentos que falam a minha língua. Não se trata de pessoas que estão distantes de mim, assim como estão distantes as estrelas. Não tenho delas apenas um tênue brilho de notícia. Elas estão concretamente posicionadas nas esquinas de minha cidade. Moram em casebres que meus olhos alcançam; frequentam os mesmos lugares que eu; trabalham na guarita do prédio onde moro.
Gabriel, só assim o mundo pode ser diferente. Só dessa forma podemos prestar socorro aos desvalidos do nosso tempo. Há uma dor que mora ao lado. Há uma injustiça que é nutrida pelo mesmo ar que nos sustenta. É dela que precisamos nos ocupar. Se não temos como mudar a situação dos albinos africanos, resta-nos fazer justiça às injustiças que todos os dias batem à nossa porta.
Você falou de esperanças. Concordo com você. Só a esperança pode nos alimentar nessas ações. A esperança não nos deixa esmorecer. Ela nos posiciona diante da dureza da realidade humana de forma sempre nova. Gabriel, o mal não dá tréguas. Vejo as teias da maldade sendo lançadas sobre nós. É impressionante o número de pessoas que estão comprometidas com a disseminação do mal. Volto a dizer. O caminho mais fácil é desanimar. Mas não creio que seja o mais honesto. Precisamos buscar imunidade contra todos esses males. Caso contrário, nós também desanimaremos.
Assim como a mãe vacina o filho para imunizá-lo contra uma infinidade de vírus, da mesma forma nós também precisamos ser vacinados contra a maldade que está presente no mundo. A maldade é sedutora. Ninguém está livre dessa contaminação. Por isso precisamos tanto buscar essa resistência diária. É uma questão de sobrevivência.
A maldade é uma arma que permanece apontada. Há sempre uma pessoa que se dispõe a apertar o gatilho. Vez em quando somos terrivelmente atingidos por ela. É nessa hora que precisamos sobreviver. Tudo dependerá do quanto já estamos, ou não, imunes a seu poder agressor.
Meu amigo, eu busco essa imunidade nas palavras. É simples. Necessito de palavras assim como necessito de pão. É uma questão de sobrevivência. Tenho fome de pão, mas também tenho fome de palavras. Gosto muito da passagem bíblica que diz que “nem só de pão vive o homem”. É verdade. Há outras fomes que precisamos alimentar.
A fome do corpo é facilmente notada. Ela se manifesta de forma determinante, aparente. O corpo que carece de alimento manda os seus sinais. A exterioridade é o território das manifestações. Não é possível esconder por muito tempo a fome física.
Nos tempos idos de minha infância, a minha mãe tinha uma expressão interessante para diagnosticar a nossa fome. Ela nos falava. “Vai comer alguma coisa porque você está muito descaído!” Eu sempre obedecia. Tinha medo de ficar “descaído”.
Talvez seja por isso que eu seja muito atento às fomes do corpo. Faço questão de favorecer a saúde através dessa pequena disciplina. Os especialistas salientam que é importante que o ser humano não passe períodos prolongados sem a ingestão de alguma forma de alimento. Essa atitude, segundo eles, acelera o metabolismo do corpo. Metabolismos acelerados são importantes
para a manutenção de uma vida saudável.
Creio que a mesma regra valha para a vida intelectual. Tão importante quanto alimentar o corpo é alimentar a alma. É claro que essa divisão “corpo e alma” é meramente didática. Creio na integralidade humana. Somos corpo e alma. É no corpo que a alma experimenta o mundo. É através da alma que o corpo transcende sua materialidade. Ao me referir à condição humana, eu não secciono, mas integro.
Uma boa reflexão acelera o metabolismo da alma. A palavra é o elemento fundamental para que isso aconteça. As imagens que vemos estão diretamente ligadas com as palavras que conhecemos.
As palavras alimentam realidades menos visíveis. Entram na mente e se perdem nos místicos emaranhados da alma. Pão e palavra possuem missões semelhantes. O corpo metaboliza o pão. Dele faz fonte de energia. Da mesma forma, a alma faz com a palavra.
Meu amigo, como é instigante esse processo. Nós nos transformamos no que comemos. O alimento é integrado pelo corpo. É por isso que insisto tanto na necessidade de sermos mais cuidadosos com a escolha dos nossos alimentos. Escolher o que vamos comer é escolher o que seremos. Nossa saúde depende dessa escolha.
O mesmo acontece com nossa vida intelectual. O cérebro é o lugar onde as ideias são metabolizadas. Ideias estão diretamente ligadas ao contexto das palavras. São elas que entrarão em nossa vida. São elas que nortearão o que somos e o que seremos.
Sei que você sabe disso, mas é bom repetir. Uma boa reflexão pode mudar o rumo de uma vida. Vejo isso o tempo todo. As pessoas erram muito porque refletem pouco. Sofrem muito porque não administram de um jeito certo as causas que as fazem sofrer. Escolhem errado, vivem errado, amam errado. Tudo porque faltou reflexão.
Muitos erros são gestados e mantidos a partir de atitudes irrefletidas, meu caro amigo. Por isso eu creio firmemente que a religião que praticamos só pode ser benéfica se nos fizer refletir. Caso contrário é alienação, esquecimento da realidade.
A vida humana é um território onde prevalecem muitas contradições. Sempre foi assim. Faz parte de nossa condição. É estatuto que trazemos na carne. Somos contraditórios.
Essa contradição nos atinge o tempo todo. Você enumerou vários sofrimentos que nascem dessas contradições. Como pode um ser humano se sentir no direito de esquartejar o outro? Mistérios da contradição. É nessa hora que entra a força transformadora da reflexão. Uma sociedade só poderá evoluir culturalmente à medida que refletir a cultura que possui.
É estranho, mas há muitos comportamentos e tradições que são mantidos sem que suas causas sejam conhecidas. Tive contato com uma história assim lá no interior de Minas Gerais. Havia uma família que tinha uma receita muito saborosa para o preparo de um peixe típico daquela região. A tradição já havia atingido a terceira geração. O fato interessante é que o peixe era sempre assado sem a cabeça. Ninguém nunca havia se questionado sobre o fato. Quem o fez foi uma das meninas, que pertencia à terceira geração.
Ao ser perguntada sobre a razão de o peixe ser assado sem a cabeça, a mãe da menina disse não saber. A resposta foi simples. Sua avó me ensinou a assar assim. A menina, por sua vez, resolveu ir fundo na investigação. A avó respondeu da mesma forma. Aprendi com sua bisavó. Tendo a oportunidade de perguntar o motivo à bisavó, a menina finalmente resolveu o enigma do peixe sem cabeça. Não há razão alguma – disse a velha senhora. É que, no tabuleiro que eu tinha, o peixe nunca cabia inteiro.
Acho interessante essa história. Nem sempre a manutenção de uma tradição está amparada em motivos consistentes. O tempo passou, os tabuleiros cresceram, mas os peixes continuaram sendo assados sem as cabeças.
Gabriel, muita coisa seria diferente se pudéssemos retomar os encantos da ágora. As pessoas seriam mais felizes, mais equilibradas, mais justas se estivessem mais dispostas à reflexão.
A vida ganha novo sentido cada vez que uma boa palavra vem iluminar as varandas da nossa mente. Uma boa palavra é como um bom alimento. Traz saúde.
Obrigado pela saúde que suas palavras me trouxeram. Volte sempre. Ficarei por aqui, enquanto faço essa boa digestão emocional.
Com meu carinho e bênção,
Pe. Fábio de Melo
Fonte: Editora Globo
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